Recentemente
li duas obras sobre a amizade: Amizade & Filósofos[1] e A amizade[2]. A
primeira oferece trechos selecionados de obras escritas por filósofos, da
antiguidade clássica à modernidade, e ambiciona ser “uma história da amizade,
ou melhor dizendo, uma história das idéias mais importantes sobre a amizade
durante os últimos três mil anos”. Massimo Baldini, o organizador, expressa a
esperança de que o seu esforço “colabore para se compreender melhor o lugar que
a amizade terá na sociedade eletrônica, rica em fatores que favorecem o
isolamento, mas farta de muitos instrumentos tecnológicos que anulam a
distância e facilitam o encontro”.[3]
A segunda,
escrita por Francesco Alberoni, é uma reflexão sobre os diversos significados
da amizade na história da humanidade. Ele começa com uma questão fundamental:
“Existe ainda a amizade no mundo contemporâneo?”[4] O que é a amizade? “A
amizade é uma forma de amor”, afirma.[5] Mas, no que esta forma de amar se
distingue de outras? Como surge? É possível a verdadeira amizade no mundo
moderno dominado por relações utilitaristas, altamente competitivo e propenso a
fortalecer o individualismo e o isolamento? A amizade é apenas interpessoal ou
também pode ser comunitária? Pressupõe relação entre iguais? Pode evoluir em
circunstâncias de desigualdade hierárquica? O professor pode ser amigo do seu
aluno, e vice-versa? “O pai pode ser amigo do filho e o filho do pai? Podem ser
amigos dois irmãos? E dois cônjuges?”[6] Quais são os inimigos da amizade? O
que pode deteriorá-la ou impedir o seu florescer?
Estas e
outras questões orientam a análise de Alberoni e instigam a reflexão do leitor
a respeito da realidade contemporânea e da nossa capacidade e/ou incapacidade
de cultivar a amizade. Em tempos de redes sociais como o Facebook, com centenas
e milhares de “amigos” ao alcance de um click, a amizade parece assumir formas
voláteis. Podemos, na expressão consagrada do sociólogo Zygmunt Bauman, nos
referir à amizade líquida. A propósito, em entrevista ao Fronteiras do
Pensamento, este eminente intelectual nos faz pensar sobre o auto-engodo das
amizades virtuais em detrimento dos laços reais que constituem as amizades
autênticas. Ele relata o caso de um viciado em Facebook que se vangloria de ter
feito 500 amigos num dia. “Minha resposta foi que eu tenho 86 anos, mas não
tenho 500 amigos. Eu não consegui isso. Então, provavelmente quando ele diz
“amigo” e eu digo “amigo”, não queremos dizer a mesma coisa. São coisas
diferentes”, afirma o simpático senhor.[7]
Claro,
embora haja a possibilidade de uns e outros confundirem as coisas. É preciso se
iludir em demasia para tomar as centenas de amigos virtuais como reais.
Qualquer membro de redes sociais, por mais viciado, pode ter a consciência
desta distinção. As amizades virtuais podem até representar um atenuante à inexistência
de vínculos reais de amizades. Contudo, ainda que o indivíduo se iluda, a
incapacidade de constituir amizades reais não tem relação direta, em geral, com
a participação em redes sociais. Os indivíduos entram no mundo virtual enquanto
seres reais, com histórias de vida, sentimentos e idiossincrasias próprias, ainda que tentem aparentar ser o
que não são. Por outro lado, na medida em que a tecnologia facilita a
comunicação, favorece os encontros e, assim, fortalece a amizade real existente
– além de potencialmente contribuir para o surgimento de novas amizades, ainda
que virtuais. Potenciais amizades virtuais podem se tornar amizades reais?
Talvez sim, provavelmente não. O mais importante, porém, é saber que amigos
virtuais e amigos reais são distintos. Se há esta percepção, não há porque
temer as redes sociais. Torna-se descabido imaginar que o mundo virtual
substitui e enfraquece as amizades reais ou a possibilidade de existirem. Como
escreve Alberoni: “A amizade existia na época de Confúcio e existe hoje. Não há
nenhum motivo para pensar que deva desaparecer no futuro. A amizade é apenas um
modelo ideal que pede para ser respeitado”.[8]
Se o ideal
de amizade que temos em nossa mente se esvaece e esta não se realiza, não
busquemos culpados no mundo exterior, no Facebook ou mesmo no amigo que se
afasta de nós. Comecemos por nós mesmos. A análise do outro deve ser
complementada pela auto-análise despida de ilusões e ressentimentos. O mais é
idealização e verborragia. Da mesma forma que devemos saber distinguir as
amizades virtuais das amizades reais, é preciso também ter a sabedoria de não
tomar a realidade das relações pelas representações livrescas. Uma coisa é
filosofar sobre a amizade, outra bem diferente é viver a experiência real da
amizade. Ler é importante e até pode nos ajudar a compreender, mas o
fundamental é o viver, a experiência real. Esta é complexa e difícil, muito
difícil. Não cabe em modelos pré-idealizados!
[1] BALDINI, Massimo. (Org.) Amizade
& Filósofos. Bauru, SP: EDUSC, 2000.
[2] ALBERONI, Francesco. A amizade.
Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
[3]
BALDINI, op. cit., p. IV.
[4] ALBERONI, op. cit. p. 5
[5] Idem, p. 29.
[6] Idem, p.148
[7] Assista a entrevista na íntegra em
http://www.youtube.com/watch?v=POZcBNo-D4A
[8] ALBERONI, op. cit., p. 153.