É assim que
a ‘Morte’, narradora da história de A menina que roubava livros conclui a
narração. Nós, os humanos, somos mesmo assombrosos! Muitas vezes, nossas
palavras e atitudes são incompreensíveis. Quem de nós já não ficou perplexo
diante de certas ações? Às vezes nos perguntamos: “como é possível”? São
momentos em que nos espantamos.
Confesso
minha perplexidade diante dos feitos e desfeitos humanos. A leitura de A menina
que roubava livros me fez, novamente, pensar sobre isso. Como é possível que um
povo cuja cultura nos legou gênios como Goethe, Beethoven, Thomas Mann, Kant,
Hegel, Karl Marx, Nietzsche, Schopenhauer, Heidegger e Max Weber, entre outros,
tenha produzido o nazismo e figuras como Adolf Hitler? Como explicar que um dos
povos mais cultos da Europa “civilizada” tenha aceitado e apoiado um dos
regimes políticos mais bárbaros da história humana? Como compreender que o povo
alemão, em sua maioria esmagadora, tenha legitimado e consentido, ativamente ou
por omissão, atrocidades inimagináveis que até nos levam a descrer do ser
humano?
Sim, “os
seres humanos me assombram”. Esse assombro não diz respeito apenas à capacidade
humana de barbarizar e banalizar o mal. Maravilho-me também diante das atitudes
dos que desafiam o barbarismo dos que reduzem seres humanos à condição
não-humana. E não me reporto aos atos heróicos, mas sim àquelas pequenas ações
do cotidiano que, em situações completamente adversas, resgatam o que há de
mais humano em cada um de nós.
Em A menina
que roubava livros, esses gestos simples, porém contundentes, são praticados
por personagens como os pais adotivos de Liesel, Rosa e Hans Hubermann. Eles
acolhem o judeu Max e o protegem. Naquela época, ter um judeu no porão era
correr um risco muito grande. Liesel, a menina que roubava livros, compartilha
desse gesto de solidariedade. Seu amigo Rudy também pode ser incluído entre
aqueles que arriscam a própria vida por um momento, uma atitude, que mostra a
sobrevivência da humanidade em nós.
Claro,
trata-se de ficção. Mas, provavelmente, indivíduos como Liesel, Rudy, Rosa e
Hans Hubermann existiram naquela realidade. Ainda que sejam pouquíssimos, deve
ter havido os que não compartilharam com o nazismo e a sua sanha assassina. Era
muito difícil ficar contra a maioria, ser taxado de ‘amigo de judeus’ era
desgraçar a própria vida e da família e ser punido. E sempre parece mais fácil
ficar com a maioria.
É muito
difícil ficar na oposição em contextos ditatoriais. Muitos pagaram com a vida
pela audácia de desafiar o ditador e a sociedade que o sustentava. Mas nem me
refiro à oposição política organizada. Personagens como Hans Hubermann me fazem
pensar sobre o homem e a mulher comuns, mas que têm um senso de justiça que os
fazem agir humanamente e assumir os riscos das suas atitudes. Todavia, o que me
intriga é que a maioria, e especialmente aqueles diretamente envolvidos nas
ações atrozes contra os judeus e outros segmentos da sociedade alemã, também
eram humanos. Como explicar que tenham seguido a ideologia nazista com tamanha
veemência?
A leitura de
A menina que roubava livros pode ser uma bela e emocionante reflexão sobre os
paradoxos do ser humano, a importância das palavras e a afirmação da esperança,
ainda que a desesperança reine temporariamente.
Um dos
aspectos que chama a atenção é o fato da narradora ser a ‘Morte’. Ninguém
melhor do que ela para nos compreender, ainda que nos assombre. Ela está aqui
neste momento que escrevo. Quase a sinto! Ela está nos lugares mais inesperados
e talvez tenha que agradecê-la por não colocar em seus braços a alma de uma
criança. Seu dia, como o meu, chegará! Felizmente não foi hoje!
ZUSAK,
Markus. A menina que roubava livros. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2007 (480p.)