É preciso colocar os óculos do
tempo para ler O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, o filósofo italiano que há mais
de 500 anos escreveu a obra na qual detalha como um governante pode chegar e se
manter no poder. Seu famoso tratado completou mais de cinco séculos - e, em
muitos aspectos, continua atual. Os protestos e manifestações que atingiram 353
cidades do País mostraram que um de seus principais conselhos aos governantes
foi esquecido: estar atento ao povo. "A
um príncipe é necessário ter o povo ao seu lado", insistia ele.
"De outro modo, ele sucumbirá às adversidades."
Descumprir promessas se
preciso, agradar ao povo e saber fazer alianças são exemplos dos ditos do autor
- os mesmos, por sinal, que o tornaram tão famoso e incompreendido. Cinco
séculos atrás, o filósofo alertava para as sutilezas com que essas ações deveriam
ser colocadas em prática.
"Maquiavel coloca que
política é um território traiçoeiro e que nem sempre uma conduta marcada por
princípios rígidos leva aos melhores resultados. O desafio é saber que se está
lidando com terreno pantanoso", afirma o cientista político Carlos
Ranulfo, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Maquiavel, então, compreenderia
bem quando políticos fazem alianças com partidos com linha ideológica diferente
ou quando oferecem cargos em troca de apoio nas eleições. Mas alertaria:
"Os Estados bem governados e os príncipes prudentes sempre cuidaram para
não levar o desespero aos grandes e para agradar e contentar o povo, esta que é
uma das mais importantes tarefas que incumbem a um soberano".
O que Maquiavel fez foi chamar
atenção para a imperfeição do homem, para o jogo de interesses. Apontar como
essas nuances se refletem na ação política. "Ele tinha claramente esses
dois lados. Tinha preocupação com o interesse público, apesar de destacar os
interesses pessoais (dos governantes)", lembra o cientista político Fábio
Wanderley Reis, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG).
O filósofo conseguiu entender
que a continuidade de um governante no poder exigiria mais que alianças e boa
retórica e por isso recomendava sensibilidade para reconhecer os anseios do
povo. "Os políticos não têm uma noção, essencial em Maquiavel, que é a
ação no tempo oportuno. Todos os problemas não resolvidos se acumulam e
explodem", pondera o filósofo Roberto Romano, professor de Ética da
Unicamp.
Na prática. O Príncipe foi
escrito num período monárquico, de reinados hereditários ou obtidos pelas
armas. Ao longo dos seus 26 capítulos, Maquiavel fez comentários como: "Os
príncipes devem encarregar outros das ações sujeitas à protestação, mas assumir
eles próprios àquelas concedentes de graça".
Nada muito diferente do que fez
a ex-presidente Dilma Rousseff quando anuncia em rede nacional a redução da
conta de luz. Ou do que fez o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, ao falar
em "responsabilidade fiscal" e anunciar o corte de gastos depois da
onda de protestos.
"As práticas descritas no
livro tratam de como conquistar e manter o poder. No caso de Estados laicos e
democráticos, como o Brasil, isso é legítimo e importante. Se pegarmos os
últimos governantes, talvez o que não tenha seguido o caminho descrito por
Maquiavel tenha sido Fernando Collor. Ele usou suas armas para conquistar o
poder, mas não soube se manter no cargo", avalia o cientista político
Fernando Filgueiras, da Universidade Federal de Minas Gerais.
Ainda assim, talvez seja o caso
de se perguntar por que, em tempos de governos democráticos, as semelhanças com
os dias atuais sejam tão evidentes. "Os homens não mudaram tanto assim.
Mudaram as ordens que constituem a sociedade (empresa, Estado, jogo político, o
Exército), mas a ação humana não. Ainda somos pessoas que têm de tomar decisão
e agir, que é o cerne da política", avalia o professor Edison Nunes, da
PUC-SP.
Para Roberto Romano, no
entanto, de Maquiavel continua vivo justamente o que não é dele:
"Políticos ainda estão no universo pré-maquiavélico, do apego às técnicas
de dominação sem a percepção do que pode ser feito de democracia, de soberania
popular". Talvez seja o caso de os políticos, estejam na base ou na
oposição, relerem Maquiavel, mas com as lentes do século 21.
Com Estadão