No cotidiano nos deparamos com
dilemas que envolvem mentir ou proferir a verdade. “Devo cumprir a promessa x
que fiz ao meu amigo Y, embora hoje perceba que o cumprimento me causará certos
prejuízos?”, pergunta o filósofo Adolfo Sánchez Vásquez (1992, p.5). “Devo
dizer sempre a verdade ou há ocasiões em que devo mentir? Quem, numa guerra de
invasão, sabe que o seu amigo Z está colaborando com o inimigo, deve calar, por
causa da amizade, ou deve denunciá-lo como traidor?” (ibid.) Imagine-se no
lugar de x ou do amigo de Z, o que você faria? Você profere a verdade o tempo
todo, em todas as circunstâncias? Como afirma Vásquez: “Se um indivíduo procura
fazer o bem e as consequências de suas ações são prejudiciais àqueles que
pretendia favorecer, porque lhes causa mais prejuízo do que benefício, devemos
julgar que age corretamente de um ponto vista moral, quaisquer que tenham os
efeitos de sua ação?” (ibidem, p.6) Imagine um indivíduo que acredita piamente
que está com a razão e persiste em sua atitude, mesmo consciente de que sua
ação é prejudicial ao outro. É correto resguardar a verdade à custa do
sofrimento do outro?
A verdade deve ser sempre o
critério que orienta a prática humana? Nas relações humanas, pais e filhos,
marido e esposa, professores e alunos, entre colegas de trabalho ou mesmo entre
amigos, é sempre a verdade que predomina? Você suportaria ouvir o que realmente
pensam a teu respeito? Você é capaz de ser franco e dizer exatamente o que
pensa às pessoas que ama, aos seus amigos e colegas, ainda que sob o preço de
que suas palavras os façam sofrer e com o risco do afastamento? Quantas
amizades, casamentos, relacionamentos humanos resistem à sinceridade? Recordo
de um casal que conheci na juventude. Recém-casados, prometeram um ao outro que
seriam sinceros, que contariam um ao outro se houvesse infidelidade conjugal. E
assim o fizeram diante do primeiro caso extraconjugal. O casamento entrou em
crise e, mesmo com tanto amor, racionalidade e compreensão mútua, não resistiu.
Como afirma o ditado popular, “o que os olhos não veem, o coração não sente”.
Há situações em que a verdade é insuportável.
“A sinceridade é uma virtude
que devemos somente a nós mesmos. Praticá-la com os outros é um suicídio”,
escreveu Vargas Vila.* Se pensarmos bem, para além do moralismo e da pretensão
à santidade, é muito difícil dizer e ouvir a verdade. Esta pode ser muito
dolorosa e destrutiva. Talvez por isto, em determinadas circunstâncias, a
mentira ou a omissão sejam não apenas preferíveis, mas uma necessidade social.
Se as pessoas fossem verdadeiramente francas o tempo todo, em todos os
contextos, as relações humanas se deteriorariam e a sociabilidade não se
sustentaria. Se pensarmos bem, em geral nos enganamos mutuamente, resguardamos
as aparências e agimos como se pisássemos em cristais sem assumirmos o risco de
quebrá-los. A franqueza pode gerar rupturas, feridas que não cicatrizam,
sofrimentos desnecessários.
Não quero fazer apologia à
mentira, mas desconfio dos que se imaginam santos, dos que se apegam às
verdades absolutas transformadas em normas rigorosas e orientadoras das
práticas morais nas relações humanas. Temo os que colocam a sua verdade acima
do humano e, em nome da verdade, provocam sofrimentos humanamente evitáveis. Às
vezes é preciso mentir – ou omitir – para proteger a quem amamos ou
simplesmente alguém que precisa de nós. Afinal, quem consegue ser verdadeiro –
franco e autêntico – o tempo todo, em todas as circunstâncias? Quem nunca
mentiu, omitiu ou, simplesmente, agiu segundo as necessidades das aparências?
Referências
Ozair
BAZZO, Ezio Flavio. Assim falou
Vargas Vila. Brasília: Companhia das Tetas Publicadora, 2005.
VÁSQUEZ, Adolfo Sánches. Ética.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.
* In BAZZO, Ezio Flavio. Assim
falou Vargas Vila. Brasília: Companhia das Tetas Publicadora, 2005, p. LXXXIII.