terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

A IDEOLOGIA DA CRENÇA



Sempre ouvi dizer que nada é o que aparenta ser. De fato, com o passar do tempo fui notando que isso se aplicava a quase tudo. Às vezes “não” queria dizer “sim” e vice-versa. Mundinho complicado, esse. A vida social é permeada por interesses ocultos com o rabo de fora. Desde pequenos, aprendemos que não devemos mentir. A mentira é feia e o mentiroso precisa ser castigado. Deus não gosta de mentiras e coisas assim. 

No entanto, muitas vezes as crianças são levadas ou obrigadas a mentir, senão repreendidas por dizerem a verdade. Não se trata de algo pontual, que se refere a algum tipo de família ou de classe social, absolutamente. É geral. Quanto mais abrangente for o meio social, mais verdadeiro isso se torna. Quando no governo, aí então…

Assim sendo, parece que a mentira é uma necessidade absoluta. No meu ponto de vista, creio que por trás de tudo existe algo que chamo de ideologia da crença ou a crença na crença ou ainda o conjunto de idéias dogmáticas que se impuseram historicamente por influência e necessidade da religião. Algo que defende a tese de que o Homem precisa ser enganado para reagir positivamente, como se o Homem devesse criado para ser feito de besta. 

Será que o Homem foi feito para ser enganado? Ah, embora eu desconheça estudos nesse sentido, me parece que sim. Como é fácil se enganar a uma criança. Chega a ser divertido. A brincadeira de esconder ovinhos de páscoa, por exemplo. Quando alguém conta como conseguiu enganar a um terceiro, por um motivo qualquer, estouram-se gargalhadas. Fazer os outros de bobo é uma brincadeirinha divertida que pode tornar-se uma profissão bem remunerada. Nem precisamos de exemplos, não é mesmo?

Desse modo, a infantilização da Humanidade tem um proveito político e econômico evidente. Todavia, há muito, chegou-se à conclusão de que o ser humano não foi feito para mentir, como demonstra o polígrafo. O que será que significa isso? Difícil responder. Porém, tanto “ética” como “moral” têm o mesmo significado – “costume”; e a institucionalização do costume de enganar veio de cima. Lá, permanece a defender suas idéias dogmáticas com o apoio dos inocentes. Não importa qual a religião, é assim que essa ideologia funciona acima de todas as crenças. Satisfação e bem-estar para uns poucos em detrimento da maioria. O medo do castigo divino é o motor desse veículo de privilégios movido pelo prazer, porque não há champanhe nem caviar para todos. 

Também sempre ouvi dizer, que isso é assim desde que o mundo é mundo. No entanto, a nossa cultura ocidental tem suas raízes na Mesopotâmia, via Anatólia ou Ásia Menor, e a antropóloga e assirióloga Gwendolyn Leick, em sua obra Mesopotâmia: a invenção da cidade revela-nos algo interessante, na página 110: “No período acadiano, os escribas a serviço de governantes desempenharam a função de “ideólogos”; sua tarefa consistia em desenvolver argumentos para contra-atacar a oposição de outros grupos que resistiam às forças de controle central; eles tinham que justificar uma nova forma de governo que concentrava todo o poder nas mãos de um rei”. Essa nova forma de governo tem, pelo menos, 2370 anos antes da Era cristã. Ao que parece (aí as aparências não enganam) a oposição entre esses grupos é de uma atualidade desconcertante.

Teologia significa “estudo das ciências dos deuses” (dos conhecimentos deles), ou melhor, significava antes de se tornar a engenharia da enganação. Vale lembrar que a religião mesopotâmica era uma religião científica, voltada para este mundo, ao contrário da egípcia, voltada a uma existência futura depois da morte. Seguindo o exemplo acadiano, naquele particular citado por Leick, os atuais escribas da teologia continuam justificando ou provendo de argumentos filosóficos a ideologia da crença. 

O historiador Arnold J. Toynbee havia previsto que o grande confronto do século XXI se dará entre duas religiões heleno-judaicas: cristianismo e islamismo. Sinais disso já se vê pelo mundo. Alguns tentam minimizar a questão, argumentado tratar-se de conflitos políticos, como se essas religiões não se envolvessem neles. Na Europa, onde a imposição religiosa tomou seu grande impulso no passado, o conflito de costumes é mais evidente. Diante do fato, manifestações ateístas tornam-se comuns por lá. Com toda certeza, posso afirmar que não existem previsões de confrontos entre ateus e religiosos. Porém, entre religiosos e ateus nunca se pode garantir. Aliás, o nome “ateu” é uma invenção religiosa, produto dessa fórmula explosiva, heleno-judaica, que alimenta o seguinte pensamento: “Quem não está comigo, está contra mim”. Para estas religiões o direito a uma terceira opinião só existe sob os refletores da mídia. 

A ideologia da crença promove o controle dos pensamentos e dos comportamentos, individuais e coletivos, e é mantida pelos interesses ocultos dos que a utilizam. Não tem cara. Na Maçonaria, por exemplo, juntam-se todas elas: cristãs, islâmicas, judias etc. Desde que se acredite em Deus. Não existem maçons ateus, você sabia? Crer na divindade é o mandamento número um dessa ideologia. A Maçonaria é apenas uma das fraternidades afins. O poder econômico que está por trás disso une interesses inacreditáveis. Tanto o (a) estudante de História quanto o (a) jovem historiador (a) devem estar cada vez mais atentos ao desenvolvimento dos assuntos “sagrados”. Sagrado significa “aquilo que pertence aos deuses”. Deus e deuses são idéias em eclipse, portanto, muita atenção. O importante é que sirvam à História, ao invés de servirem de eco a uma erudição estéril e tendenciosa.

O professor Richard Elliot Friedman, titular de hebraico e literatura comparada, na Universidade da Califórnia, doutor em teologia por Harvard e membro do Bilblical Colloquium, entre outras qualificações, em sua obra, O desaparecimento de Deus: um mistério divino, deixa entrever que a Bíblia hebraica é uma versão censurada, e nela a idéia da presença física da divindade entre os humanos foi desaparecendo nos livros seguintes ao do Gênesis. A interferência direta da divindade vai sendo substituída por visões ou sonhos, até atingir a total abstração pela ação indireta dos profetas, que passam a atuar como intermediários da vontade divina. “Deus desaparece na Bíblia. Leitores religiosos e não-religiosos por certo irão achar tal afirmação surpreendente e intrigante, cada qual por suas próprias razões. Confesso, de minha parte, que a acho estarrecedora. A Bíblia se inicia, como todo mundo sabe, num mundo em que Deus está ativamente e visivelmente envolvido, mas não é assim que termina.” (FRIEDMAN, 1997, p. 19) 

Outro judeu mais conhecido, Albert Einstein, em sua obra Como vejo o mundo, diz o seguinte: “O judaísmo não é uma fé. O Deus judeu significa a recusa da superstição e a substituição imaginária para este desaparecimento. Mas é igualmente a tentação de fundar a lei moral sobre o temor, atitude deplorável e ilusória. Creio, no entanto, que a possante tradição moral do povo judeu já se libertou deste temor. Compreende-se claramente que “servir a Deus” equivale a servir à vida.” (EINSTEIN, 1981, p. 114) Acrescento, por minha conta, que servir à História equivale (também) a servir à vida. 

Será que estamos nesse mundo como descendentes de colonos avançados, sem saber? Será que a fonte das nossas mazelas estaria na disputa entre a nossa natureza divina, herdada dos nossos criadores, e a natureza terrena, lutando por intermédio dos seus anticorpos contra os invasores que habitam em nós? Será que a luta entre o Bem e o Mal se resume nisso, e nós somos o campo de batalha dessa contenda? Não sei. Por enquanto é a ideologia da crença que dá as cartas, mas a verdadeira identidade da religião ainda não foi revelada para quem gosta legitimamente de História. História é uma paixão que não maltrata. Vocês, jovens historiadores (as), podem fazer a diferença. 

*Ivani de Araújo Medina é carioca, nascido na ilha do Governador em 1947. Formado em Artes Plásticas pela antiga Escola Nacional de Belas Artes na década de 1960, e autodidata e pesquisador em História do Cristianismo.

Via debates culturais


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