Não
é raro que a alegada “sensatez” mascare posturas e pensamentos
conservadores. Geralmente, a rebeldia é identificada com o impulso
destrutivo. Cobra-se do crítico que apresente soluções. A crítica
sempre deve ser propositiva? Talvez a forma mais sutil de
desqualificar a crítica esteja em afirmar a sua infertilidade, em
desmerecê-la enquanto crítica com a exigência de comprometimento.
A rebeldia é, então, canalizada para os espaços reconhecidos pela
ordem; impõe-se que ela seja construtiva. Dessa forma, fragiliza-se
o potencial “destrutivo” – no sentido de “desestabilizador”
– inerente à crítica. Desconsidera-se, assim, sua positividade e
o que ela contém enquanto afirmação do oposto, o vir-a-ser, ainda
que latente.
Em
termos práticos, exige-se não apenas que a crítica seja
acompanhada de “propostas”, mas que o seu emissor atue a partir
das estruturas criticadas. Assim, domestica-se a crítica e,
simultaneamente, compromete-se o crítico com a instituição e as
condições que estimularam sua atitude. Na política este processo
se efetiva na exigência de participar das instituições sob a
crítica. Renova-se, assim, o dilema.* Historicamente, esta atitude
resultou na incorporação, cooptação e domesticação da
consciência crítica.
O
indivíduo que não se enquadra nas estruturas e instituições que
sustentam a ordem social e política também é pressionado. A
“consciência revolucionária” parece pressupor a exigência da
crítica orgânica, isto é, conformada em um corpo social que se
materializa na organização política. O argumento é forte! Para
ser eficaz, o crítico precisa superar o individualismo e o
isolamento e agir com outros. Ele é intimado a aderir ao partido,
geralmente autodenominado revolucionário e, portanto, portador do
gérmen da futura sociedade. Só se é cristão sendo membro da
Igreja; da mesma forma, afirma-se que a única possibilidade de “ser
revolucionário” é estar no partido, a vanguarda iluminada da
classe.
O
indivíduo é impotente para transformar a realidade apenas por suas
próprias forças. Sua crítica tende a permanecer no âmbito a
negação. O primeiro passo, portanto, é reconhecer esta
fragilidade. O indivíduo que atua por si, isto é, que não
articula, não se organiza em coletivos políticos, deve saber das
limitações resultantes da sua opção e que dificilmente sua ação
crítica terá eficácia. Com efeito, a transformação social é uma
obra coletiva. Contudo, não prescinde do indivíduo. A seu modo, e
com os limites inerentes à sua ação, o indivíduo também pode
contribuir com o projeto do vir-a-ser. Será que a história não nos
ensinou suficientemente a desconfiar tanto dos indivíduos que
aspiram condensar em si a utopia quanto de grupos organizados, que se
consideram “iluminados” e falam e agem em nome da classe social
teoricamente portadora da nova sociedade?
Ora,
é legítimo que os indivíduos se organizem e, assim, ampliem a sua
capacidade de intervenção. Mas será legítimo negar o direito de o
indivíduo não aderir e optar por seguir outras veredas, ainda que
caminhe só? Por acaso, sua contribuição deixa de ser relevante?
Claro, é muito mais cômodo seguir em rebanho e talvez seja ainda
mais vantajoso fazer parte da alcateia. Aliás, não se diz por aí
que o mundo é dos espertos e dos mais capazes? Capazes de que?
O
homo economicus, bem como o homo academicus, parece mais disposto a
se aliar aos os lobos e os animais ferozes e, na competição por
cargos, dinheiro, status e mais-valia real e simbólica. Quem se
recusa a ser caçador, corre o risco de ser transformado em caça, em
ovelhas e cordeiros a serem devorados. Ou, na melhor das hipóteses,
a ser visto como exótico ou cândido! Será o espírito de rebanho a
melhor opção ao Homo homini lupus?! Talvez a causa da rebeldia
esteja em repudiar a alcateia, mas também rejeitar a submissão ao
pastor.
* Sugiro a leitura de As contradições
do “ser-no-mundo”: entre a rebeldia e a acomodação.